Eu comecei o Laboratório de Escritas Afetivas com esse pensamento. E fui pra esse laboratório muito desconfiada e resistente. Algo meu queria se haver com meu próprio processo de escrita depois de 10 anos de tentativas frustradas de me tornar uma escritora… ACADÊMICA. Foram cerca de 5 treinamentos específicos, além de um curso de seis meses, pra tentar dar conta de fazer algo que eu achava que eu precisava: escrever bem um artigo científico.
O resultado de tantas empreitadas acabou sendo só um sofrimento intenso: eu escrevia nesse estilo, mas sempre muito porcamente. O texto do meu mestrado foi totalmente revisado pela minha orientadora, o do doutorado, por um colega, professor de Letras, e ambos, por uma empresa revisora de ortografia e escrita acadêmica. Os artigos científicos sempre foram escritos em conjunto e eu contribuía de várias outras formas – analisando dados, fichamentos, organizando para o processo de publicação, etc… mas escrevendo, muito pouco.
Os concursos que prestei após o doutorado também confirmaram o que minha ex-orientadora de mestrado e doutorado repetia todo encontro de orientação: você não sabe escrever. Tive notas bem medianas nessas avaliações de texto.
Um dos resultados disso foram anos fugindo da escrita. Eu até escrevo algumas coisinhas pífias pra redes sociais, impulsionada pela necessidade de produzir conteúdo para minhas páginas profissionais, mas nada com muito impacto e profundidade. E até mesmo, num movimento irônico da vida, foi eu fazer um pós-doutorado num programa de um curso de LETRAS. Mas mesmo assim, escapei da produção de escrita. Fiz várias atividades no pós-doutorado: participei de Grupo de Estudos, dei aulas, organizei eventos, apresentei em um congresso… mas, o máximo que produzi de escrita foi um resumo pra esse congresso. Eu resistia e fugia de escrever. “Você não sabe escrever” – ecoava sempre em mim a frase da minha ex-orientadora.
Bom, se eu não sei escrever, como você está me lendo?
É que nessa frase “Eu não sei escrever” falta um advérbio de modo bem especifico… Eu não sei escrever ACADEMICAMENTE.
E essa palavrinha “academicamente” nessa frase foi fundamental pra dar um limite extremamente necessário. Eu não sei escrever para esse lugar ACADÊMICO que demanda um estilo de escrita formal, sintético, objetiva, polido e, principalmente, estéril. Entendi que esse estilo de texto é uma tentativa de emular o que parte das ciências tentam ser: racionais e neutras. O que bem sabemos que não é verdade, mas elas continuam tentando.
Portanto, a escrita científica-acadêmica deve ser impessoal e assujeitada. Assujeitada aqui, pra mim, significa “sem sujeito”, ou seja, sem subjetividade. Não importa quem realiza a pesquisa, não deve transparecer nada daquele que escreve. Sabemos que isso é impossível, a autoria acaba aparecendo de alguma forma. Mas o que quero dizer é que, objetivando esse lugar extremamente racional, objetivo, direto e sintético, há um esforço para o apagamento da subjetividade da pesquisadora. E aqui o Laboratório me trouxe um segundo insight dolorido e necessário: meu corpo resistiu a esse apagamento subjetivo.
Lembrem-se que disse que eu fiz vários cursos para aprender a escrever cientificamente-academicamente. Inclusive, quando tive oportunidade de ser orientadora de Trabalhos de Conclusão de Curso, todes mis alunes tiveram notas máximas nas avaliações ou muito próximo dessas. Afinal, cognitivamente e racionalmente eu tinha e sabia todas as ferramentas para esse estilo de texto. Inclusive, fui muito eficiente na orientação desses trabalhos acadêmicos. Porém, a cognição-racionalidade não era suficiente. Porque não há algo central para a escrita: o corpo.
Essa semana, inclusive, nos meus atendimentos clínicos (sou psicóloga) uma analisanda me trouxe algo incrível. Ela é professora de ensino infantil e seu campo de especialidade é a alfabetização. Ela me contou que nenhuma criança consegue aprender a escrever uma letra se aquilo não tiver sido vivido pelo corpo dela. Explicou-me que, para alfabetizar a criança, essa precisa sentir a letra desenhada no chão, numa massinha, na pele – ela rabisca a letra nas costas da criança, por exemplo. E só depois, de todo esse processo, a criança consegue desenhar a letra.
Portanto, em todos esses 10 anos, meu corpo resistiu a uma escrita estéril e fria. Minha “cabeça”, a parte racional, intelectual, queria que eu o fizesse, mas meu corpo se recusava. As frases, parágrafos acabavam saindo confusos ou, minimamente, medíocres. E por isso eu ouvi tantas críticas…
Para aquelus que não sabem, a facilitadora do Laboratório, Malu Jimenez, é uma baita pesquisadora e, para mim, a maior liderança do ativismo do corpo gordo, aliás, das corpas gordas do Brasil. Portanto, discussões sobre corpo nessa Oficina me movimentaram esse insight: eu precisava escrever com meu corpo, não com meu intelecto.
Enfim, finalmente, eu pude entender que sei sim escrever. E complemento com algo importantíssimo que aprendi com o Laboratório, não apenas digo que SEI SIM ESCREVER, mas principalmente EU POSSO ESCREVER. E vocês estão acompanhando esse momento de virada de chave comigo.
Eu não quero escrever para a esterilidade acadêmica, esse muito higiênico, frio, calculista e moralista. Pra mim me interessam corpas e escritas dissidentes, na qual há sujeitas, sujeites, sujeitos cheio de subjetividade, afetos e vida. Escritoras e leitoras que existem, pensam e, principalmente, sentem. Sentem com todas a pele, órgãos, entranhas, tripas. Se afetam. Eu não quero essa escrita limpinha. Quero a bagunça do corpo que brinca e o caos da subjetividade. De toda vida pulsante. Que se lasquem as regras ortográficas e a normas da ABNT.
Eu existo e sempre existi. Com todo o tamanhão de uma mulher alta e gorda. Uma corpa que resistiu a escrever de forma acadêmica e que sempre resistiu em ser pequeno. Uma corpa que eu tentei emagrecer até meus 30 anos. Então, talvez, eu também esteja entendendo que minha corpa, eu e minha escrita tem direito de existir e ser. Exatamente do jeito que é.
Portanto, quero ser mais uma corpa, voz e letras que ecoa junto com a vida que há muito além dos muros das instituições acadêmicas. Uma pessoa que escreve para a vida.
Eu sei escrever.