
Crônicas do cotidiano: Encontros, Afetos e (re)existências de uma pesquisadora Artivista GORDA

APRESENTA:
Uma novidade para vocês, se liga aqui....
Olá, pessoas queridas!
Hoje decidi tirar do papel uma ideia que há tempos faz morada em meus pensamentos: abrir um pequeno diário virtual por aqui e compartilhar com vocês um pouco sobre meu cotidiano como pesquisadora e artivista gorda. Quero que esse espaço se torne uma porta aberta para que possam conhecer melhor minha caminhada, meus encontros e as sementes que venho semeando no vasto campo de estudos e artivismo das corporalidades gordas no Brasil.
Caso você ainda não me conheça, aqui vai um breve retrato: sou profundamente apaixonada por esse tema. Minha trajetória tem sido dedicada a estudar o corpo gordo, desenvolver ações de artivismo e lutar por percepções mais dignas e acolhedoras em relação às infinitas maneiras que os corpos habitam o mundo. Muitas etapas marcaram este percurso — do mestrado ao pós-doutorado, passando por pesquisas e projetos variados –, sempre com o propósito maior de promover questionamentos, abrir novas perspectivas e fortalecer resistências.
Algo que percebi, contudo, é que frequentemente as pessoas que acompanham meu trabalho — sejam colegas, estudantes ou mesmo seguidores — não têm a real noção do que se esconde nos bastidores dessa jornada diária. Não que isso seja uma falta delas, de forma alguma! Entendo bem como nem sempre comunico tudo que acontece nessa correria frenética chamada vida. Foi então que me perguntei: “Por que não trazer um pouco dessa vivência para cá? Por que não compartilhar?”
Através desse espaço, sonho com algo despretensioso: um lugar tranquilo, sem rigidez ou compromissos calendáricos, onde possa conversar sobre cenas do dia a dia. Quero relatar episódios significativos, eventos que frequentamos, trocas de afetos preciosas e até aqueles momentos difíceis de dúvida ou reinvenção que marcam nossos passos. Cada pedacinho conta essa grande história e merece ser parte das nossas trocas.
Minha expectativa é que estas narrativas venham para inspirar, especialmente aquelas pessoas que, como eu, fazem parte da nossa luta ou desejam mergulhar nesse universo. Espero que minhas reflexões ecoem para quem lê aqui, fazendo nascer um abraço invisível por meio das palavras. Quero ampliar essa rede de incentivos onde juntes possamos seguir construindo e trazendo provocações para nossas aplicações concretas de movimentos com sentido.
Portanto, fiquem por perto! Logo logo começarei a trazer esses fragmentos vividos, sejam eles bem-humorados ou carregados de emoção. Mas todos, prometo, virão temperados com muita verdade e afeto. Me emociono pensar nessa ideia tomando forma para ser compartilhada.
Agradeço imensamente pela companhia até aqui e torço para continuarmos juntEs, fortalecidas pela coragem, pelo amor e sempre celebrando nossas (re)existências como pessoas gordas.
Com carinho,
Malu Jimenez
Sobre escrita, caminhos, corpas, ocupações e resistências. Por Dani Moraes
Desde criança gostava de escrever. Escrever era uma forma de me esconder dos abusos que vivia ainda pequena. Era infernal aguentar um homem meu parente, que chamo comumente de estuprador. Mas não era só ele. Eu era uma criança branca, loirinha, daquele tipo considerado por muita gente como “padrão”, mas vivia ouvindo que era gorda, era filha do demônio, que iria pro inferno, que não pertencia à família, que ia morrer. Lembro de gostar de pintar também, mas os lápis de cor e canetinhas eram escassos. Mas havia caderno. Havia os papeis de pão. E escrever era como entrar num outro mundo, mesmo quando os deveres de casa eram apenas copiar páginas e páginas de alguma coisa que eu nem consigo lembrar onde estava escrito. Eu só lembro de mim escrevendo.
Eu me apaixonei logo pela poesia. Era a escrita mais livre, que podia fazer o sentido que quisesse, dependendo de quem quisesse ler. Eu aprendi a não me prender muito às rimas ou a fazer versos certinhos, como os professores queriam. A escrita meio sem lugar, sem pauta, sem linha e sem nexo podia estar no mundo e construir o meu mundo. A escrita apenas fluía.
Eu gostava da gramática, de conhecer as regras de Português, e logo isso virou um hobby. Eu gostava de saber a lógica e a história daquelas regras. Porque pela história já se via que as coisas mudavam. E de repente vi que estudar as regras – que foram por tanto tempo chamadas de “cultas” – era também um modo de nutrir comigo a esperança de mudança. A língua é viva, igual às minhas poesias. Aprendi a gostar de outras línguas e a trabalhar mais para poder estudá-las. Gosto de ver a fruição em muitas línguas. Queria me dedicar mais a isso. Ainda quero.
Escrevi muita poesia até entrar na faculdade. Ali foi só ladeira abaixo. Me fodi muito, quase fui jubilada. Mas pior era ser humilhada constantemente. Minhas letras, minha poesia, minha classe, minhas roupas, meu trabalho, minha corpa, nada cabia naquele lugar. Fui uma “aluna pífia” até começar a ver clínica e também a ver o “academiquês”. Aí consegui começar a sobreviver. Fiz vestibular pra História, mas um professor de Saúde Coletiva soube e me demoveu da ideia. Me chamou pra estudar discurso, saúde e mídia com ele, ainda vivíamos o rescaldo daquela ditadura. Então, primeiro foi o academiquês. Talvez pela habilidade em estudar as regras das línguas, eu tenha conseguido me achar logo nele. Depois descobri que podia usar o mediquês de outros modos e me tornei exímia em escrever as anamneses, os exames e em traduzir a luta política das pessoas vivendo com HIV em laudos e relatórios para obterem os “benefícios”, que de benesse não têm nada… Descobri que o mediquês podia ser usado pra resistir e pra fuder o sistema. Hoje meu carimbo habita uma bucetada de processos judiciais contra a falta de acesso à saúde, e até contra o despejo de pessoas de movimentos de luta por moradia.
Volta e meia recebo ameaças, principalmente de advogados. Quero que se fodam. Se for pra perder, vou perder o registro lutando.
Voltando à história, mais tarde me reconheci como educadora popular. Professora, eu era desde os 14. Mas sempre educadora popular. Só não sabia esse nome. E fui mexendo, mexendo com as palavras, até hoje poder trilhar com outras pessoas os caminhos de escritas escarnadas, incorporadas, até às vezes numa tal academia, onde ando ocupando as margens. E muitas vezes escrevendo junto também os prontuários com as pessoas que me cuidam e que cuido, e muitas vezes a serviço de infiltrar nessa merda de meio acadêmico outras existências, seres, vidas e corpas, que como eu, são fora de lugar porque se recusam a ocupar o lugar que lhes foi determinado.
Eu quero é voltar a botar meu bloco na rua e a escrever poesia na areia de uma praia, pro mar vir e levar pra minha mãe Iemanjá.


Dani Moraes
Mulher gorda cis, bissexual, feminista, amante de palavras, músicas e cães. Sou educadora popular e trabalho como médica e pesquisadora em Saúde Coletiva. Mestrado e doutorado em Saúde Pública e sou tutora do Galak e da Pedrita.
A escrita como Expansão e Possibilidade por Daniele Lemos
As palavras nos constituem. As palavras nos dão acesso ao mundo dos significados, nos permitem organizar, ordenar, classificar, tornar inteligível e racionalmente existente o já existido. Nos permitem dar sentido, nos permitem sentir. Paradoxal, no entanto, é perceber que ao mesmo tempo que as palavras me permitem dar sentido e sentir, elasas palavras- não são suficientes ao sentir. O sentir extrapola, incontrolável, indisciplinado e caótico. Elas- as palavras- me permitem sentir ao mesmo tempo que limitam o meu sentir. Elas- as palavras- dizem o que sou, quem sou, como sou. Elas- as palavras- dizem o que não sou, quem não sou, como não sou. Cartesianamente excludente. Impositivamente determinante. Identitariamente constituinte. Sou elas – as palavras- mas sou muito mais do que elas- as palavras. Usam – “mulher careca” – pra me descrever, pra me fazer existir. Passei a existir na ordem do que não deveria existir. Na ordem do patológico, na ordem do desvio, na ordem do anormal. As palavras que usam pra me fazer existir compõem uma amálgama de discursos que explicam o inexplicável. Ela- a mulher careca- não deveria ser assim. Se é mulher não deveria ser careca, se o é, não deveria ser. Mesmo sendo, mesmo existindo, as palavras usadas reafirmam que não deveria. Voltemos, as palavras que me fazem existir são as mesmas que dizem que eu não deveria. Ao menos não dessa forma. Vai lá- as palavras dizem. Não tem cura? Vai se curar! Quais são os tratamentos disponíveis? dizem também- Não é melhor se maquiar? Desenhar a sobrancelha? Passar um batom? Colocar um brincão? Dizem ainda: E se você usar perucas? E se aprender formas distintas de usar turbantes? E se usar um chapéu? Um gorro? – Você existe, mas não deveria! Ao menos, não assim, não desse jeito! Fui me compondo por essas palavras, fui existindo através delas. Mas hoje faço diferente! Brinco com elas- as palavras! Estico-as, confundo-as, desgasto-as. Crio novas- as palavras! Alargo o léxico, rompo a morfologia, reinvento a coerência, construo novos sentidos. Rasgo palavras, costuro significados. Então a resposta é: Não! Não vai ter tratamento, peruca, chapéu ou brincão. Vai ter confusão. De palavras e de sentidos. Se as palavras que me fizeram existir até aqui não me comportam, vou criar novas que me expandam!


Daniele Lemos
Nasceu em 1989 no Rio de Janeiro. Atualmente professora de sociologia do ciclo básico. Licenciada e bacharel em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado em sociologia pela mesma Universidade. Atualmente finaliza seu doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro com uma pesquisa autoetnografica sobre a relação entre gênero e alopecia. Sua própria experiência como mulher despelada desde os 11 anos de idade tornou-se o ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre o tema, culminando no trabalho intitulado: A alopecia como performatividade: Eu, sereia careca. Atualmente , junto com a artista Lolla Angelluci e Mariana Amaral, integra o grupo - Sereias Carecas- que busca visibilizar a experiência de mulheres com alopecia a partir de uma ênfase na despatologização dos seus corpos.
A Escrita Como Experimento e Liberdade por Thais Borducchi
O caminho de reconexão com a escrita está profundamente ligado ao processo de me reencontrar comigo mesma. Houve um tempo em que a escrita parecia distante, as palavras não fluíam, e qualquer tentativa de expressão se desvanecia antes de ganhar forma. Cada tentativa frustrada carregava os bloqueios que me foram impostos desde a infância. No entanto, ao me reconectar com minha própria história, percebo que é única, imensa e que merece ser contada. A escrita, então, deixa de ser um fardo e se transforma em um encontro comigo mesma, com minhas vivências e com as de outras pessoas. Ela se torna uma prática afectiva, potente e revolucionária.
Cresci acreditando que a escrita era um privilégio de poucos. A escola me ensinou a temer o erro, a evitar a página em branco com medo de não estar “correta”. A escrita, que deveria ser um meio de liberação, tornou-se um reflexo das inseguranças que carregava, especialmente por causa dos meus muitos erros gramaticais, que sempre me deixaram com medo de expor minhas ideias.
A relação entre a escrita e o meu corpo sempre foi marcada por um conflito interno. Ser uma mulher gorda em um mundo que frequentemente marginaliza vozes como a minha fez com que eu me sentisse insegura em relação à minha expressão. Durante meus anos de faculdade e com meu Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvi uma pesquisa sobre o corpo gordo feminino, e essa experiência foi transformadora. Ao explorar as narrativas e as vivências de outras mulheres gordas, percebi que minha voz e minha história também eram válidas e possíveis. Através dessas histórias, fui capaz de refletir que cada corpo carrega uma história única, e que as experiências individuais são narrativas poderosas.
No curso “Escritas Afectivas”, compreendi que meu lugar de fala é, antes de tudo, um lugar de potência. Aprender a valorizar essa perspectiva foi fundamental para que eu me sentisse à vontade para escrever. Os erros gramaticais que tanto me intimidaram passaram a ser vistos como parte do processo, e não como barreiras intransponíveis. Passo a ver a escrita como um espaço de experimentação.
Ao longo da minha jornada, percebi que as dores que carrego não são apenas marcas físicas, mas histórias profundas que habitam meu corpo. Ser uma mulher gorda em um mundo que muitas vezes marginaliza a diversidade de corpos traz um peso emocional que se manifesta em traumas e inseguranças. Junto com outras mulheres, revisitamos e compartilhamos nossas dores.
Vivo em um corpo constantemente julgado e analisado pela sociedade, e muitas das dores que carrego vêm desse lugar de exclusão e invisibilidade. Minhas cicatrizes não são apenas físicas, mas emocionais, resultado de anos ouvindo que meu corpo era errado ou não merecia ocupar espaços. Durante o curso, fui guiada a revisitar essas feridas, a confrontar não só a dor que veio do olhar alheio, mas também os medos e inseguranças internalizados.
Escrever sobre essas dores foi como passar o dedo em cicatrizes que o tempo suavizou, mas que ainda carregam lembranças intensas. Descobri que há uma cura em dar nome a esses sentimentos, em transformar em palavras a dor de não ser aceita e a luta por existir plenamente em um mundo que tantas vezes nega essa possibilidade. Minha escrita vem se tornando um espaço seguro, onde essas cicatrizes podem existir sem vergonha, onde posso ressignificar a narrativa que por tanto tempo me foi imposta.
Cada frase que escrevo é uma forma de costurar as feridas deixadas por anos de gordofobia, mostrando que essas cicatrizes fazem parte da minha história, mas não definem minha capacidade de ser, de amar e de criar.
Hoje, ao olhar para minhas cicatrizes, vejo não apenas as marcas de dor, mas também a força que carrego ao transformar essas experiências em palavras. A escrita me da o poder de comunicar minha vivência como mulher gorda de forma honesta e vulnerável, sem medo de expor o que antes parecia inominável. Cada palavra é um ato de resistência, um testemunho da minha jornada e da minha superação.


Thais Borducchi
Nasceu em 1993 em São Paulo, capital. É bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e em sua produção artística investiga a temática da gordofobia, empregando uma variedade de técnicas para explorar tanto questões que envolvem o preconceito enfrentado pelas mulheres gordas quanto a importância de celebrar suas formas singulares. Em seus trabalhos, formas voluptuosas e volumes proeminentes representam a exuberância e a diversidade dos corpos. Nos últimos anos participou de exposições coletivas com obras autorais. Também trabalha como Diretora de Fantasia na Escola de Samba Acadêmicos de São Jorge, e estagiou com o carnavalesco Sidnei França na Escola de Samba Águia de Ouro de São Paulo.
MULHER GORDA: Um corpo proibido!
Por Malu Jimenez
Na minha infância, como criança gorda, lembro de muitos episódios em que outras crianças riam de mim, na aula de educação física por exemplo, segundo aquelas outras crianças, não conseguia correr pelo tamanho do meu corpo. Eu me esforçava tanto para nunca perder e mostrar que era gorda, mas conseguia correr, que sempre terminava exausta e nem sempre conseguia ganhar, lógico!
Mas, foi num dia em particular que a quadra estava cheia de gente, era gincana na escola, que eu fui tão ansiosa para ganhar entre 10 alunos, que cai de cara no asfalto da quadra e ralei meus joelhos, mãos e doeu muito, tanto fisicamente como emocionalmente, porque ouvia os risos e comentários sobre minha incapacidade por ser gorda.
Nenhum adulto que estava lá me protegeu, ou reprendeu as outras crianças que riam de minha dor.
Na adolescência, ganhei uma saia curta branca de pregas, era o uniforme para fazer atividade física da escola pública que frequentava, me olhei no espelho e me senti linda naquela roupa. Estava dançando com outras amigas usando a saia, quando um grupo de meninas começaram a rir e apontar para mim, e ouvi de longe: – a gorda ridícula quer dançar; que nojento! Doeu, e mais uma vez a violência, ódio, nojo ao meu corpo aconteceu, foi assim que fui crescendo e entendendo que meu corpo representava na sociedade: fracasso, risos, nojo!
Quando adulta, fui ridicularizada muitas vezes por ser gorda, lutava para estar sempre magra, já que ser gorda nesse mundo dói demais, passei mal, desmaiei, fiquei sem comer, tomei remédio, não importava os meios, mas o fim era estar “magra” e para isso valia tudo e qualquer coisa. Cometi diversas atrocidades contra mim mesma, nessa construção de um corpo almejado que não era o meu e que para tê-lo era preciso me machucar.
Penso agora quanto sofrimento, era dor para todos os lados, por estar gorda e querer ser magra, sempre estava me automutilando, machucando, desprezando. A sociedade não me dava outra saída, e eu no fundo queria simplesmente viver com o corpo que eu tinha: gorda. Mas a saúde, a educação, a família e amigos me diziam: Emagreça por sua saúde.
Tanta dor me levou num momento da vida adulta a repensar tudo isso, por quanto tempo continuaria seguindo esse padrão de sofrimento, perseguindo essa dor para estar e ser aceita numa sociedade que nunca estava satisfeita com meu corpo, quem eu era e o que buscava: Viver, simplesmente SER.
Aos poucos comecei a estudar a fundo a questão do corpo gordo, entender os mecanismos que a gordofobia atua, identificar que ela é a mola propulsora normalizada. Mola propulsora de tanto sofrimento, e ainda me culpar por tudo isso, como o mecanismo heteronormativacolonial consegue sempre culpar as vítimas com maestria, porque a própria vítima também se culpabiliza.
Esse caminho tem sido longo e nada linear, depois de uma tese defendida, ativismo, leituras, aulas, Lives, feminismo e muito trabalho de mudanças de paradigmas sobre o corpo gordo, mas principalmente sobre meu corpo gordo maior, em que entendi que toda essas dores, feridas que tenho marcadas em meu corpo, vem das atitudes normalizadas das pessoas em invisibilizar quem somos, o que fazemos, definitivamente: MULHER GORDA
não pode existir.
Pensem comigo: quantas histórias de mulheres gordas vocês conhecem na arte? Quantas mulheres gordas que aparece e mostram o que fazem são aceitas, valorizadas, compreendidas? Aposto que são bem poucas e quando existem, são desvalorizadas ou anuladas, existimos e o tempo todo nos é apagado o direito de existência.
Nas minhas redes por exemplo, mesmo agora que venho a anos desconstruindo o que significa ser uma mulher gorda, sou relembrada a todos os dias que minha história, o que tenho para dizer, falar, construir, ou mostrar deve ser apagado, bloqueado. Meu corpo não pode aparecer como outros corpos que vemos na internet, é um corpo proibido.
Sou colocada em um lugar social de exclusão, de inferioridade, como se não merecesse contar minha história, meu ponto de vista a todo momento, e você que ainda acha em pleno século 21 que as pessoas gordas estão doentes, ajuda a fomentar esse ódio ao meu corpo, aos corpos gordos.
A gordofobia opera disfarçada em saúde e cuidado, mas na realidade é ódio que as pessoas tem que esses corpos existam e resistam: nossas redes são denunciadas, bloqueadas sequencialmente, como se por sermos uma mulher gorda não tivéssemos o direito de nos mostrar, estudar, ser doutora, ensinar, aprender, dançar, cantar, pesquisar, escrever ou simplesmente viver, existir… Estamos falando de um sistema de apagamento de nossas vidas, um dia atrás do outro, de um extermínio sistêmico de corporalidades gordas em muitas frentes, na maternidade, na academia, no ativismo, na literatura, na dança, na saúde, na atividade física, na internet…
Na VIDA!
O funcionamento dessa lógica gordofóbica é, e está em todo lugar, dentro da sua cabeça,
MULHER GORDA: APAGA TUDO!
Para Consultar:
– Erving Goffman. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
– Rafael Mattos. Sobrevivendo ao estigma da gordura.
– Michel Poulain. Sociologia da obesidade.
texto do BLOG: Gordofobia uma questão de perda de direitos. Maria Luisa Jimenez Jimenez -https://www.todasfridas.com.br/2018/03/11/gordofobiauma-questao-de-perdaa-de-direitos/
Tese que virou livro, lute como uma gorda: gordofobia, resist~encias e ativismos.
Tese de doutorado lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos.
(https://web.archive.org/web/20210614205051/https://lutecomoumagorda.home.blog/tese-de-doutorado-lute-como-uma-gorda-gordofobiasresistencias-e-ativismos/)
Texto publicado no BLOG Todas Fridas, 2021.
Por que usamos calcinha?
Por Malu Jimenez
Essa é uma pergunta que faço desde criança. Nunca gostei de usar e continuo odiando. Fui educada pela minha mãe e irmã mais velha que tinha que usar, porque me protegeria de \”bichos\” e/ou \”sujeiras\” rsrsrrs hoje quando lembro, dou risada….
Sempre me incomodou, machucou, abafou, enfim… Nunca entendi muito o sentido de ter que usar a tal da calcinha…. Para nós mulheres gordas, além de ser difícil achar calcinhas confortáveis, ainda temos a dificuldade de achar do nosso tamanho…
É como se a calcinha fosse um acessório muito mais para a sensualidade, para sexualidade no universo masculino, do que para a mulher que é quem usa. Além de que, tudo que é sensual, \”feminino\” sexy não é para um corpo gordo grande, muito pelo contrário, esse tipo de consumo nos é negado porque é visto socialmente como um corpo morto, doente que provavelmente não tem vida sexual….
Com a pandemia estou em casa desde março com raras saídas, sempre fiquei o máximo de tempo que conseguia em casa sem, e agora na pandemia, nem sei mais o que é usar calcinha, e posso garantir que não me faz a mínima falta….
Conversando com algumas seguidoras, amigas se usavam calcinha e se sentiam confortáveis, me surpreendeu o numero de mulheres que vem abolindo a calcinha de suas vidas, magras, gordas, não gostam e já não usam mais.
Pesquisando sobre a temática, é certo que essa peça de roupa tem um valor muito maior que uso prático, confortável e de proteção, foi apenas no século XX que a lingerie passa a ser uma peça obrigatória no nosso vestuário, ao longo do tempo a “calcinha” que já foi bermuda deixa de ser “funcional” para se tornar uma arma poderosa da sedução masculina.
Ou seja, a tal da calcinha como percebemos, usamos e consumimos hoje está muito mais ligada a sedução heteronormativa do que uma peça funcional, confortável de proteção como muitas de nós ainda pensamos. Mais uma ferramenta que nos obrigam a usar para satisfazer o desejo masculino.
O mercado entorno a essa peça é gigantesco, basta você pensar nas cores, tecidos, modelos, lojas especializadas… Em algum momento de nossas vidas compramos calcinhas “belas” para agradar alguém ou não? Nosso corpo feminino sempre agradando aos outros e nosso conforto?
Pode parecer bobeira, coisa de “feminista”, alguns dirão que é mimimi, mas nós mulheres estamos nos incomodando cada vez mais com o que usamos, com o que nos aperta, machuca, abafa, dói. E a calcinha é em definitivo uma peça complicada de agradar a todos os corpes….
Inclusive pesquisando por ai, existem marcas de lingerie feministas, como no caso dessa matéria que encontrei, link abaixo, “O feminismo e a volta das calcinhas extra grandes, ultra simples e mega confortáveis” de 2018, no qual apresenta algumas marcas e ideias de produção de calcinhas confortáveis, mas ainda não de abolir essa peça. Então a pergunta continua: Por que devemos usar calcinha?
Outro fator interessante é pensar porque se chama “calcinha” no diminutivo hummm? Frágil? Pequenino? Deve estar preservado? Tampado?
Outro jogo de discurso de dominação que diminui nossa vulva como algo que deve estar dentro da ideia de cuidado e proteção, valoroso, mas que deve estar guardado, vigiado e que é menor e bem mais frágil do que o pênis por exemplo, já imaginou chamar a peça intima do homem de cuequinha? Já ouvi cuecão, mas cuequinha jamassss não é masculino.
O diminutivo está quase sempre relacionado ao que é menor, mais frágil, pequeno, enfim… No universo masculino ao contrário, é sempre o aumentativo ão da palavra ligada a força, poder: Ricardão, machão, gostosão, cuecão e assim vai….
Talvez esteja na hora de revisar esse uso como algo apenas sensual e não funcional para quem usa, nós mulheres.
Eu uso cada vez menos e não sei se agora depois da pandemia tem volta, porque é outra realidade, inclusive para a saúde da vulva, muitas mulheres como eu relataram que não tem mais corrimento, candidíase…, mas a medicina não dizia ao contrário, algum tempo atrás, em nome da saúde?
Lembro que um médico que fui na adolescência me disse para usar de algodão se me incomodava e desaprovou o não uso da calcinha, porque disse que o uso era higiênico, apenas a pouco tempo que tenho visto o conselho médico para dormir sem, ou usar o menos possível.
Esse é um ótimo exemplo de como nós mulheres, as dissidentes, não somos escutadas dentro dos consultórios médicos, porque penso que se reclamei de um incomodo porque não prestar atenção a ele?
O que posso dizer a vocês é que parar de usar calcinha, algo que sempre quis, me fez experienciar o quanto essa peça é uma imposição cultural masculina de controle e que não usar é libertador, vale a pena experimentar!
Como vocês percebem o uso da calcinha na vida de vocês?
Consultar:
Rosemary Hawthorne. Por Baixo do Pano: a História da Calcinha. São Paulo: Matrix, 2009.
Fabiana Correis. O feminismo e a volta das calcinhas extra grandes, ultra simples e mega confortáveis, 2018. Disponível em: https://thesummerhunter.com/gioconda-clothing-lingerie-feminista/
Sylvia Pessoa Almeida. TCC:” Meu corpo, minhas regras\”: uma análise do discurso feminista na internet. UFRJ. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/250
Texto publicado BLOG Todas Fridas, 2021.

Lute como uma gorda é um blog criado pela Profa. Dra. Malu Jimenez, ativista e pesquisadora do corpo gordo. Aqui reunimos e potencializamos conteúdos sobre este tema, a fim de construir, conectar e formar pessoas que se interessem pela causa.
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